quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Cidade clandestina






Primeiras palafitas erguidas nos anos 40 em Alagados edificaram em Salvador uma das maiores favelas brasileiras da maré

Perla Ribeiro - pribeiro@correiodabahia.com.br


Difícil conter o espanto ao andar por ali. Com o papa João Paulo II fora assim. Alagados, aquele amontoado de tábuas e estacas, era o retrato da miséria em Salvador. Nos anos 90, abrigou mais de cem mil habitantes, entre pontes de madeira que ligavam os barracos erguidos sobre o mar. A cidade clandestina edificada nos anos 40 do século XX na Baía de Todos os Santos chegou a ser erradicada, mas deu lugar a outra igualzinha anos depois. Hoje, em tempo de palafitas quase extintas, barracos ainda flutuam nas águas da baía na Baixa de Massaranduba.


















Crueldade delicada

Cartão-postal ambíguo revela a face perversa de um mundo desigual


Ao norte da Baía de Todos os Santos uns tantos Josés, Pedros e Antônios construíram um novo cartão-postal ambíguo para Salvador. Era a cidade das palafitas. Ali, a miséria tinha formas, cores e movimento. Atraía olhares de pintores, artistas plásticos, fotógrafos e turistas que viam no cenário uma beleza exótica. Por mais fiéis que fossem as lentes, não conseguiam traduzir aquela realidade. As fotografias tinham mais colorido do que a própria vida nas palafitas. Embora a leitura das obras artísticas sinalizasse para uma denúncia social ou um grito mudo de protesto, a leveza dos traçados tornava o cenário exibido na tela mais harmonioso. “A beleza criada pelo grande artista torna ainda mais dramática essa paisagem cruel, essa vida na lama”, avalia Jorge Amado, no livro Bahia de Todos os Santos, referindo-se a uma obra do pintor Jenner Augusto retratando a vida nas palafitas.
Debruçar o olhar sobre as enseadas dos Tainheiros ou do Cabrito durante o pôr-do-sol e visualizar os raios incandescentes enchendo de luz os barracos de madeira era de uma beleza plástica que causava admiração. Para alguns, o cenário podia até retratar uma miséria linda de se ver. Já para os moradores, era praticamente impossível encontrar inspiração para qualquer poesia naquela seqüência de barracos de madeira se equilibrando sobre a maré. Viviam ali por mero instinto de sobrevivência. Tão dura e perversa quanto a morada, era a vida para aquelas famílias.
Contrastando com o brilho do sol que atravessava as frestas e enchia os barracões de luz, se o cotidiano delas tivesse cor, estaria mais próxima do preto do mangue. O cheiro também não era nem um pouco agradável – uma mistura de lixo, fezes, carcaças de animais mortos e outros dejetos sanitários despejados na maré. Também era fria. Fria como os ventos que vinham acompanhando a maré de março, e, sem pedir licença, avançavam pelas frestas dos barracões, insensíveis à finura dos cobertores. Imitando os barracos que viviam a se equilibrar na dança da maré, os moradores realizavam verdadeiros malabarismos para garantir a sobrevivência. De tantas lutas diárias, cada um passou a carregar dentro de si uma alma guerreira.
Nascido e criado em um barraco em Novos Alagados, José Eduardo Ferreira Santos representa um dos tantos guerreiros das palafitas. Desde cedo, se despiu do estigma da pobreza e buscou trilhar um caminho diferente dos pais. Não deixou para trás a rua que foi palco de todas as peraltices de infância. O lugar onde foi erguida a casa de alvenaria é o mesmo que outrora abrigou um barraco sobre a maré. Só que em vez de água, hoje a casa é sobre a terra. Ele continua o mesmo homem simples da palafita, mas ostenta no currículo um mestrado em psicologia, dois livros publicados e viagens internacionais.
A vida sobre as palafitas é página virada, mas as recordações da “situação de pobreza concreta e desumana” foram preservadas. “As pessoas tinham que viver em uma precariedade constante. Só a condição de pobreza explica o que é viver sobre uma palafita. É um arranjo que a pessoa improvisa. Não tem poesia. É uma realidade dura, por isso é preciso ser forte. Quem morou em palafita tem uma força tremenda”, avalia. Mais do que força, eles revelaram saber conviver perante as adversidades.
Enquanto na cidade clandestina eram conhecidos pelos respectivos nomes, para os moradores da cidade formal, eles carregavam o peso de serem os invasores da maré e viver em palafitas. Habitar a maré era estar sujeito à segregação, ser discriminado e rotulado. Tudo isso por não terem direito a uma morada digna. “As famílias introjetavam o estigma da pobreza e impotência, contudo se percebia um forte espírito de coletividade”, avalia o pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) Antonio Mateus de Carvalho Soares, que estuda a sociologia urbana. Tão pejorativo quanto os julgamentos que se faziam daquela gente foi o nome escolhido para denominar a localidade: Alagados.
Tido como uma das primeiras invasões da capital baiana, Alagados chegou a reunir no início da década de 90 mais de cem mil habitantes e se configurou em Salvador como o maior exemplo da desordenada ocupação do solo por invasões. Décadas mais tarde, quando começava a se acreditar que as palafitas seriam erradicadas do cartão-postal da cidade, eis que surgem Novos Alagados. Com as mesmas características do outro conglomerado urbano sobre a maré, o lugar abrigou remanescentes de Alagados e milhares de famílias que buscavam um teto. A paisagem era a mesma e não tardou para ganhar proporções semelhantes. A diferença é que, em vez da Enseada dos Tainheiros, o local escolhido para abrigá-lo foi a Enseada do Cabrito.
Ciente do peso que era ostentar aquele endereço no currículo, na hora de procurar emprego, inúmeros moradores o escondiam no intuito de serem aceitos. Depois de um forte trabalho de organizações não-governamentais (ONGs) locais, aos poucos eles conseguiram trilhar uma nova história. Em vez de reféns, passaram a assumir a sua verdadeira identidade e ter orgulho dela. Até então, podiam até esconder o endereço, mas não as cicatrizes espalhadas pelo corpo. Fruto das quedas nas pontes, elas representavam uma marca universal dos moradores. Em menor ou maior proporção, todos a ostentavam. Quando não eram as pontes que cediam carregando junto consigo para a maré as pessoas que trafegavam no local, muitas vezes os próprios barracos não suportavam o peso e desmoronavam, evidenciando a fragilidade da construção.
Era uma vida subumana. Não contavam com as mínimas condições de sobrevivência, mas o próprio tempo e a necessidade os ensinaram muito bem a lidar com a escrota arte de viver sobre a maré. “Não havia dor maior para uma mãe do que ver os filhos chorarem porque ainda não estavam acostumados a viver sobre a maré. Eu não agüentava ver as crianças chorando. O jeito que encontrava era sair com eles de manhã e só voltar quando estava anoitecendo”, conta dona Epifânia Ferreira, 79 anos, que à época garantia o sustento da família como lavadeira.
Se não tinham infra-estrutura disponível, a saída era o improviso. A água vinha de balde, a energia elétrica era substituída pelo candeeiro e, na falta de um sanitário adequado, faziam um buraco na palafita e os dejetos caíam direto na maré. Na falta de fogão, a comida era cozida no fogareiro no chão. Muitas vezes, diante de uma dispersão, o fogo atravessava o chão e a panela caía direto na maré. Em maior número eram os pequenos acidentes. No entanto, no final da década de 90, o fogo se alastrou por cinco barracos nas palafitas de Alagados, causando um verdadeiro desespero entre a população. Embora estivessem rodeados pela água, em minutos o fogo se propagou, fazendo as moradas virarem cinzas.
Quando faltava dinheiro para comprar comida, o anzol era a solução. Da própria porta de casa conseguiam tirar da maré o que comer. E mesmo se a maré não tivesse para peixe, podiam contar com os vizinhos. Melhor, ali eram mais que bons vizinhos, formavam uma grande família. Talvez por compartilharem das mesmas dificuldades, desde a chegada dos primeiros moradores, construíram um forte movimento de solidariedade. Sabiam que só com a ajuda mútua e um movimento coeso conseguiriam levar melhorias para o local. Mais do que unir forças para reivindicar educação, saneamento básico e energia elétrica, podiam contar uns com os outros para ajudar a trocar as madeiras do barraco ou mesmo para pedir um punhado de farinha. No fundo sabiam que com um pouco de empenho podiam trocar o ritmo agitado do embalo da maré por uma canção mais lenta.






Elo trágico

Pontes de madeira erguidas sobre a maré eram motivo de acidentes entre os moradores do lugar


Podiam até respeitar o relógio dos homens, mas nas palafitas não era ele quem ditava as horas. Ali, o mais importante dos relógios era o da maré. Era o nível das águas do mar que sinalizava quando as famílias podiam sair de casa e também o seu retorno. Elas desconheciam qualquer teoria que justificasse todas aquelas alterações. Para aquela gente que mal freqüentou a escola, era exigir demais que compreendessem o fenômeno causado pelas atrações simultâneas do Sol e Lua sobre as águas do globo. Bastava estarem atentos às mudanças da lua que dificilmente erravam. Quando isso acontecia, era um verdadeiro corre-corre de mães carregando crianças como pencas, equilibrando-as nos braços para protegê-las da maré.
“Quando a maré enchia demais era um percalço transportar as crianças. A água cobria as pontes e não tinha como atravessar. Carregava uma por uma no braço para levar à escola”, conta dona Epifânia Ferreira. Embora não tenha ocorrido nenhum acidente mais grave, todos os dez filhos tiveram os corpos marcados com pequenos arranhões fruto das quedas nas pontes. Mesmo quando o nível da água estava baixo, não podia haver descuido. Bastava um pouco de desatenção e, quando viam, os pequenos eram tragados pelo mar, causando desespero. Quem sentiu na pele esse drama foi Maria de Fátima Santos de Jesus, 33 anos.
Ela saía para trabalhar e enquanto fechava a porta de casa o filho de 3 anos caiu da ponte. “Nesse dia, a maré estava alta e quando vi a criança já estava sendo arrastada pela água. Comecei a gritar, como não apareceu ninguém para pegá-lo, me joguei na maré e o segurei pela camisa”, conta. O pequeno bebeu tanta água que teve que ser levado para a emergência. Algum tempo depois, seria a filha de 1 ano e 2 meses que cairia também. Para sua sorte, dessa vez a maré estava baixa. “Ainda bem que ela caiu na lama e não teve nada”, diz Maria de Fátima.
De tão freqüentes os acidentes, as marcas viraram um sinal coletivo entre os moradores das palafitas. Assim como as lembranças ácidas da vivência sobre a maré, as cicatrizes os acompanharão por toda a vida. “Até hoje tenho a cicatriz de um palmo na perna esquerda. O prego saiu rasgando tudo”, recorda dona Cleonice Silva Santos, 64 anos, mais uma das vítimas das pontes. Construídas de forma rudimentar com madeiras reaproveitadas, elas exibiam fileiras de pregos à mostra, como se estivessem à espreita de uma nova vítima. Por mais que os moradores cuidassem da manutenção, vez ou outra a comunidade acabava sendo surpreendida pelo aviso de que a madeira não dava mais conta de suportar o peso das inúmeras pessoas que repetiam o movimento de vaivém diário sobre ela. “Em 1986, as pessoas para entrar em casa tinham que esperar a maré baixar, senão caíam porque todas as madeiras estavam podres”, relata a educadora Vera Lazarotto, que viveu em Novos Alagados de 1976 a 2001.
Antes das pontes expandirem pelas palafitas, o meio de sair de casa na maré alta era o barco. “Quando a maré estava cheia a gente saía de barco e quando estava vazia íamos pela lama mesmo e levava uma toalhinha pra limpar as pernas quando chegava no seco”, conta dona Cléo. Assim como as palafitas, as pontes começaram a surgir timidamente e, em poucos anos, já eram responsáveis, pela interligação de toda aquela cidade informal. Diante da grande multiplicação, a saída foi atribuir nomes a elas. “As pontes vão sendo organizadas de acordo com a procedência das famílias, que possuíam origens e tradições diferentes. O meu trabalho junto com Lázaro foi justamente esse, tecer essa união entre as pessoas”, informa Vera Lazarotto.
Para os moradores, a água salgada da maré até protegia e prolongava a vida da madeira utilizada nas pontes de ligação entre uma palafita e outra. No entanto, a água doce da chuva acabava acelerando o seu desgaste. Frágil como os barracos, as pontes precisavam ser reforçadas constantemente. Quando os líderes comunitários não conseguiam sensibilizar o poder municipal, a saída era realizar mutirões e revitalizá-las com sobras que encontravam nos lixões. Espaço comum de convivência, elas representavam o palco de novas amizades e era onde, literalmente, as vidas se cruzavam.
Era como um município do interior dentro da cidade grande. O despertador coletivo era o barulho do rádio às 5h, seguido da luz do sol, do choro das crianças e do grito das mulheres de porta em porta vendendo pamonha. Ali as pessoas sentavam nas portas para papear, pediam uma xícara de arroz emprestado pela janela e as mulheres se reuniam em grupos para mariscar. Assim como compartilhavam as angústias e tristezas, dividiam os parcos momentos de diversão e alegria. “Ninguém sentia uma dor sozinho”, diz dona Cleonice. As dificuldades eram muitas, mas sempre acabavam encontrando uma justificativa para continuarem lutando. De fato a vida ali não tinha muito colorido, mas isso não impedia que ela fosse animada com algumas notas musicais. Enquanto dona Epifânia se benze e diz “Ave Maria, cruz credo”, quando recorda da vida nas palafitas, para dona Cléo, por mais que o livro não traga muitas histórias felizes, há trechos que ela guarda com carinho no seu baú de saudades. Sabia que para fazer festa tinha que reforçar o chão de casa, senão ele não resistia e jogava todo mundo na maré. Ainda assim, ela tinha prazer em ver o barraco encher de gente atraída pelo som dos instrumentos do marido. “Era acordeom, pandeiro, uma verdadeira festa. O povo amanhecia o dia aqui. Mas antes a gente tinha que reforçar o chão”, diz, saudosa.
Verdade ou ficção, o fato é que todo ex-morador das palafitas guarda a lembrança de um barraco que não suportou o peso e despencou durante um enterro ou aniversário. “Um menino morreu atropelado em Paripe e muita gente veio para o velório. Por causa do peso, o chão cedeu, levando todo mundo para a maré. Mas não deu para ninguém morrer afogado. Quando corria a notícia que uma casa tinha caído, todo mundo ia ajudar”, conta dona Epifânia Ferreira, 79 anos. Talvez as crianças tenham sido as principais vítimas da maré. Chefes de família, as mães saíam para trabalhar, deixavam os filhos maiores tomando conta dos menores e, por algum descuido, os pequenos caíam dentro dos buracos usados como sanitário.
“Na favela a situação familiar é diferente. É muito comum encontrar a mulher trabalhando e o homem, não. A figura feminina é o principal arrimo da família”, explica o mestre em psicologia José Eduardo Ferreira Santos, nascido e criado em uma palafita. Não há nenhuma estatística que revele com precisão o número de mortes, mas relatos dão conta de que dezenas de crianças tiveram a vida sugada pela maré. Os primeiros casos chegaram a ser noticiados como manchete de jornais mas, de tão habituais, foram perdendo o destaque. No calor do acontecimento, causava revolta e indignação, mas acabavam tendo o mesmo destino das páginas dos jornais – no dia seguinte eram deixados de lado e viravam folhas de embrulho.
Nesse cenário de precariedades, a grande diversão era o banho de maré, a picula nas pontes, as partidas de futebol na lama, e claro, pescar e mariscar. “Os moradores das palafitas expressam uma variedade de práticas cotidianas que refletem o seu ambiente de morada. Nessas práticas percebe-se claramente o envolvimento do morador da palafita com o ambiente da maré, como se efetivamente fizesse parte daquele ecossistema”, avalia o pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) Antonio Mateus de Carvalho Soares, especialista em sociologia urbana.


















Guerreira escondida

Epifânia Ferreira, 79 anos, revela as marcas da luta diária contra a miséria e a fome


Na cadeira de rodas na porta de casa, dona Epifânia Ferreira, 79 anos, assiste a vida passar. Quem vê a senhora de aparência frágil não consegue enxergar a guerreira escondida ali. O sorriso doce e o semblante leve da matriarca de cabeleira alva escondem as marcas de uma luta diária travada contra a miséria e a fome. Morava no Luso, mas com a construção da Avenida Suburbana teve que deixar o local e acabou erguendo uma palafita em Novos Alagados. “Vim com os filhos todos”, diz, referindo-se aos dez filhos, sendo apenas quatro biológicos. Comparada aos dias de tormento, hoje, ela diz, leva uma vida de princesa. Mora em chão firme, tem telefone em casa e duas televisões, sendo uma delas de 29 polegadas.
“Não gosto nem de falar daqueles tempos. Para fazer a casinha tive que ir para o mato tirar madeira. Botava uns pauzinhos hoje e outro amanhã. Levei quase um ano nessa vida para construir dois cômodos. De noite para dormir acendia o fogo do lado de fora porque havia mosquitos demais”, conta, acrescentando que foi mordida por rato três vezes enquanto dormia. Ela foi uma das primeiras pessoas a fincar os pedaços de madeira na maré de Novos Alagados e construir ali a sua morada. “O povo foi chegando aos poucos, marcando os paus e hoje isso aqui está uma cidade”, diz, apontando as casas ao redor. Quem vê a rua toda pavimentada sequer desconfia que um dia ali foi maré.
É como se fosse mais uma batalha vencida. Além dos esforços individuais e coletivos, foi preciso muita raça. Durante protestos em que reivindicavam uma infra-estrutura mínima para Novos Alagados, moradores foram enxotados pela força policial com bomba de gás, líderes comunitários foram presos e ainda tiveram que correr dos cachorros da Polícia Militar. Mas isso não intimidou a população. Desde que invadiram a maré, as famílias construíram um forte movimento social e estavam dispostas a lutar até o fim pela garantia dos seus direitos. Para a organização da comunidade, cada núcleo de moradores criava sua estrutura social. “Hoje a gente dá risada quando lembra das dificuldades, mas para conquistar isso aqui foi muita guerra”, conta dona Elza Soares Silva, 51 anos.
O espírito de guerreiro não permitiu que as famílias desistissem. Além de reivindicarem do poder público providências para a localidade, homens e mulheres colocavam a mão na massa e faziam sua parte. Diante de tantas adversidades, era preciso buscar meios de trilhar um caminho diferente. Além de saírem no meio da noite em busca dos entulhos das construções abandonadas, realizaram inúmeras vaquinhas para a compra de caminhões carregados de entulhos. “Muita gente saiu daqui porque não teve peito para entulhar”, conta dona Elza. A passos lentos, depois de quase dez anos de labuta, conseguiram aterrar a primeira travessa. O nome escolhido para denominar o lugar reflete o anseio de uma gente cansada de lutar: Travessa da Paz.
“A gente esperava anoitecer para ir pegar os entulhos, mas quando os vigias percebiam, tomavam tudo”, recorda dona Epifânia. Na Segunda Travessa Nova Esperança, o aterramento também foi fruto das mãos e suor dos moradores. “A gente começou carregando entulhos para colocar aqui. Quando a prefeitura chegou já tinha muitas casas entulhadas”, conta dona Elza, que foi criada em Alagados e chegou a Novos Alagados logo que iniciou a invasão. Sabiam que só com o esforço coletivo conseguiriam melhorias para o local. E, de tanto batalhar, a comunidade passou a servir de referência para outras invasões da cidade, contribuindo assim para o nascimento do Movimento de Defesa das Favelas (MDF).
“Mobilização comunitária sempre existiu, mas existia também uma forte presença de dom Lucas Moreira Neves, que trouxe a Associação de Voluntários para o Serviço Internacional (Avsi), que junto com a Conder iniciou o processo de revitalização da área”, explica José Eduardo. Além da recuperação física e ambiental, as intervenções realizadas tinham como foco estabelecer uma relação entre vários agentes, possibilitando uma forma articulada e integrada de intervir no espaço urbano e de transformar o comportamento dos moradores em relação ao seu habitat.
Comparado às intervenções anteriores, o Ribeira Azul revelou-se um programa muito mais amplo, com perspectivas mais eficazes – pelo menos sob a ótica do planejamento público. Foram milhões investidos e o programa reconhecido Brasil afora. Segundo especialistas, as estratégias utilizadas revelam aparentemente uma proposta mais consolidada, tendo como meta principal a erradicação das palafitas. Premiado internacionalmente como modelo de intervenção urbanística, o programa transformou a área. No entanto, não fosse a mobilização da comunidade talvez o projeto não tivesse saído do papel. Se o problema era cobrar do poder público, protagonistas não faltavam para desempenhar esse papel. Isso porque um dos aspectos que muito chamam a atenção é o número de associações de bairro nas comunidades de Alagados e Novos Alagados.
“Nunca foram favelados caracterizados só pela pobreza, tinham um forte dinamismo cultural e educativo. As primeiras escolas que surgiram, por exemplo, foram resultado da luta das lideranças comunitárias que levaram em frente a conquista dos direitos”, avalia Eduardo. Em algumas áreas foi possível entulhar e manter os moradores no local. Em outros casos foi preciso relocá-los para conjuntos habitacionais. No entanto, as casas ficaram pequenas demais para os sonhos dos antigos habitantes da maré. E é por isso que a luta por transformações sociais continua. O movimento permanece coeso. Só que agora, ao invés da infra-estrutura, carregam como principal bandeira a educação.
Na opinião de Vera Lazarotto, embora fosse uma vida muito dura, as famílias viviam o dia a dia na comunidade. “Havia muita esperança, força interior e desejo de transformação por parte da população”, diz a educadora. Para ela, o crescimento da Sociedade Primeiro de Maio, primeira ONG criada em Novos Alagados, se deu justamente através da luta pela educação. “Cada novo núcleo que surgia na maré procurava a Sociedade em busca de educação. A criação de escolas foi fundamental para o enraizamento da população no local”, avalia. Premiado pelo Unicef e homenageada pela Unesco, o trabalho da Sociedade Primeiro de Maio é motivo de orgulho para a educadora Vera Lazarotto. É com sorriso no rosto que ela informa que no local só há 4% de analfabetos entre idosos e que uma pesquisa realizada em 2004 indicou que o índice de analfabetismo com relação à população com idade igual ou inferior a 25 anos é menor ainda – apenas 1%. Foi por acreditar nessa filosofia que junto com o marido, Lázaro Lazarotto, à frente da Sociedade 1º de Maio, conseguiu empreender muitas transformações sociais em Novos Alagados. Hoje, a ONG possui três escolas comunitárias, uma creche, um centro de reforço escolar, filarmônica, biblioteca e um centro profissionalizante com oferta de sete cursos. A sociedade atende a 2.116 crianças e adolescentes e 116 pessoas da comunidade trabalham lá dentro. “É aquilo que Paulo Freire diz: ´É preciso ter fé nas pessoas´”, defende a educadora.
***Alagados
(Aos meus amigos de Infância.Em memória: Valtemir, Vando Bandolo, Gilson Caruru,Toinho Magriça, Carlinhos Negão e Mario Nagô.)
Estes versossão memórias e sonhosda maré como lembrançanos desejos da infânciavivida nas palafitas...De pés descalçoscorrendo pelas pontes,catando raios de solnas asas de um beija-flor!Meu coração tinha enredos:melancolia e fantasiaspalpitavam como foliase desfilavam sem alegorias...
À noite,os momentos eraminfinitos: um fifó acesoespantando a escuridão,gatos lânguidos esfomeados,ratos correndo dos algozese tamancos rachadosfugindo da leptospirose...O tempo à noitesempre se estendia,eu tentava empurrá-locom as mãos, pura agonia!Ele teimava em desfilarentre os dedos, lentamente...Segundos, minutos, horas e dias,parava o tempo!
Uma Ave Maria e um Pai Nossopara amenizar o sofrimento!
Pela fresta,via-se as últimas gotasde estrelas trêmulascirculando sobre tábuaspodres sobrepostase esqueletos de caibrossob a lua que ludibriava os telhados...
O diaflorescia na enchente,atiçada pela maré de março.Em cada barraco, olhos veladosretiravam o que tinhame o que não tinham, sufoco!O povo dos alagadosrecorria a todos os santossob a luz de um sol minguado...
Correi marezeiros!
Há nas pontes,dependurados e sombreados,desejos da vida, sangue em lágrimas,trapos velhos e pinicos furadosrasgando o ventre dos sonhos,agora, macerados!Bocas de caranguejos, asas de morcegose nenhuma flor como desejo...
A maré cheianos convidava ao mergulho.Crianças davam caídas,era o prazer do corpo na água,o debater de braços e pernas,nadar! Ingenuidade da flor idade...Na borda do prazer,a cilada montava o cenárioentre estacas, lixos e galhos.O perigo era fatal... Tarde demais!No azul, um sol de tempestades.A morte é crua, a felicidade é fugaz,na adversidade mais um que se vai...Erguia-se um silêncio!Havia uma alma desesperada,em fuga, pedia a extrema-unção.A tarde uivava, a dor se curvavae nenhum padre, nenhuma benção,mas a noite te virá em orações!Naqueles momentos,a maré cumpria a sua sina.Vestia-se de cinzae nos desespero das lágrimasuma garoa fina!
Mas, não sei, era paradoxal!Pratos vazios, tripas em revoluções,urubus, cachorros e ratoslutavam por comidas no beira mangue...Siris magros e mariscos aferventados,crianças amareladas exangues.O prato se repartia, mercúrio disputado,enquanto lombrigas faziam greve de fome!
Sob um céu de jade,natal chegavacom luas estreladas!Nos olhares, quanta alegria,escondendo a dor, a melancolia...Os barracos eram enfeitados,nos pisos de tábuas carcomidasa areia branca dava o toque mágico,nos alagados, enfim, tinha vida!Nos jarros de barro,galhos de pitanga e espadas de Ogum,folhas de arruda presas nas portas,sal grosso nos telhados e alfazemapara espantar os maus-olhados,gatos pretos ludibriados...A noite era o olhar e viria em clarões!Nas portas, nenhum tamanco, nenhum chineloe pela manhã, nem ao menos uma bola, uma boneca!Papai Noel nunca vinha, disfarçava, enganava...
No fundo de nós,uns olhos de tormentostorturados por natais iguais,à procura de manhãs desiguais!
Valei-nos, Jesus menino!Lembrai dos vossos pequeninos,em vossas mãos, os nossos destinos!
Nelson Haroldo










Remanescentes no mar

Cinqüenta barracos de madeira ainda flutuam sobre a maré na Baixa de Massaranduba


Elas não compõem mais o cartão-postal de Salvador como outrora. A cidade das palafitas praticamente foi erradicada, mas até hoje, na Baixa de Massaranduba, um grande labirinto de becos estreitos leva a cerca de 50 barracos de madeira que flutuam sobre a maré. Penetrar no ambiente sombrio de pessoas com semblante carregado é como percorrer ruas de uma outra capital. Nela, a miséria é gritante e está retratada no cenário insalubre. É um lugar onde o inabitável se transforma em abrigo de famílias que um dia sonharam com um lar. Diante do sofrimento, muitos já nem sabem mais admirar a beleza de um pôr-do-sol.
“Só a falta de uma casinha para morar justifica eu continuar aqui. Isso não é para gente não”, desabafa a dona de casa Sirleide Santos, 29 anos, que sonha com a casa própria no chão firme.
Excluídas do mercado de trabalho formal, as famílias não têm a menor condição de arcar com outra forma de moradia. E, mesmo considerando as condições desumanas, não vêem outra opção senão continuar vivendo sobre a maré. Ali pelo menos alimentam a expectativa de, a qualquer momento, serem beneficiadas com uma nova habitação através dos programas da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (Conder).
É fim de tarde de uma sexta-feira de janeiro de 2007. O sol se prepara para se debruçar sobre a Baía de Todos os Santos e, da porta de casa, a baiana de acarajé Edineusa Santos, 37 anos, parece ignorar o belíssimo espetáculo. Quando olha ao redor do barraco de madeira onde vive há 11 anos, só consegue pensar em uma coisa: quer se mudar dali. Enquanto muitos sonham com uma morada com vista para o mar, seus olhos não conseguem vislumbrar nenhuma beleza naquele cenário. Só enxerga a situação de pobreza extrema. Diante de tantas dificuldades, perdeu a capacidade de apreciar as coisas simples da vida. Ela já não se encanta com o pôr-do-sol nem com a freqüente dança dos barcos sobre a maré. Também cansou de bailar no mesmo ritmo das águas, acompanhando o balanço da palafita.
Andar pela ponte que circunda a casa onde vive também requer cuidado absoluto. É preciso pisar com cautela e torcer para que nenhuma madeira vire pó diante de um passo firme. Para Edineusa, aquilo não é vida, é um martírio, é como se estivesse fadada a carregar uma pesada cruz. E o corpo começa a emitir os primeiros sinais de que não agüenta mais. Desde que se instalou ali na Baixa do Petróleo, em Massaranduba, sonha com a mudança. Mas falta para onde ir. Antes, vivia em uma casa de aluguel na Ribeira. “A gente não podia mais pagar, então o jeito foi vir para a maré. Aqui é um sofrimento, quando a gente anda em casa balança tudo”, conta a dona de casa, que divide o barraco de três cômodos com o marido e dois filhos.
Foi justamente a falta de recursos para moradia que motivou o povoamento da maré no final da década de 40. Em uma cidade que crescia sobre a terra, provavelmente deve ter causado um certo estranhamento quando o autor da empreitada fincou na lama as primeiras estacas e anunciou o que faria no local. Quem via a casa ganhar formas devia duvidar que aquele esqueleto de restos de madeira protegeria famílias da chuva e do sol. A idéia era audaciosa. Inovadora também. Ainda assim, o autor parece não ter publicizado muito o feito. Muitos desconhecem quem foi o primeiro a habitar a maré. Há quem atribua a um mestre-de-obras chamado Paulo Costa. Fato é que, em pouco tempo, o novo arquétipo de moradia ganhou um sem número de adeptos na Salvador provinciana.
Pioneiros Para construir os barracos não necessitavam de conhecimentos de engenharia civil ou arquitetura. Ali, a ciência que falava mais alto era a vontade de ter um teto, mesclada a uma boa dose de improviso. Quarenta e oito anos se passaram e dona Diva Barbosa Machado, 82 anos, guarda fresquinha na memória as lembranças da construção da primeira palafita que morou. “Levei as telhas de canoa. Lembro que no início forrei o chão de jornal para fazer de cama e também usei como lençol”, conta. Madeirites, restos de madeira e telhas Eternit eram as principais matérias-primas utilizadas para erguer as casas. Na busca por um pedaço de terra onde pudessem levantar a morada, milhares de famílias trocaram a terra firme pela maré e ali construíram parte de uma vida. “Com o lixo, com a lama e com a necessidade de habitar, com sua capacidade de viver, de se sobrepor à morte, o povo constrói bairros inteiros, ergue suas casas na terra ou no mar”, relata Jorge Amado, no livro Bahia de Todos os Santos.
Desabrigados do incêndio da Feira de Água de Meninos, imigrantes do interior baiano atraídos pelo anúncio do governo que estabeleceria na Península de Itapagipe uma zona industrial e tantos outros sem-teto foram chegando e se instalando. Mesmo a promessa do governo não se concretizando, o lugar já representava um leque de oportunidades de emprego por abrigar as indústrias Sambra (produtora de óleo de mamona), Souza Cruz, Barreto de Araújo (fábrica de chocolate), Crush (fábrica de refrigerante), Fagipe (fábrica de tecido) e a Cortiço, que produzia material homônimo. A descoberta do poço do petróleo em Lobato, em 1939, também serviu de chamariz. “A morada nas palafitas reflete uma situação de existência marcada por múltiplas pobrezas”, avalia o especialista em sociologia urbana Antônio Mateus.
À época, Salvador não possuía aterro sanitário e era no local que era despejado todo o lixo produzido na cidade. Bastava ouvir o barulho do caminhão chegando que homens, mulheres e crianças corriam afoitos em busca do aproveitável. Ali, gente disputava com ratos o que comer. “Todo lixo de Salvador era descarregado aqui. Quando o espaço não suportava mais tanto lixo é que fizeram o aterro sanitário. Quando era menino nossa diversão era ver o caminhão descarregar o lixo”, conta o engenheiro eletricista Nelson Haroldo, nascido e criado em Alagados.
As condições eram as mais insalubres possíveis, mas nem isso impedia que a invasão fosse ganhando novos moradores. Não tardou para que a notícia de que, na Salvador em que os terrenos começavam a ser alvos da especulação imobiliária, restavam ainda pedaços de terra de ninguém. Quer dizer, havia quem acreditasse que o mar não tinha dono. Só mais tarde as famílias travariam uma briga com a Marinha para permanecerem no local. “As primeiras famílias foram ocupando a área de mangue, mas os que chegaram mais tarde só encontraram a maré mesmo. A palafita é uma morada antropológica. Está muito ligada com a própria busca do homem por proteção e sobrevivência. Tem uma relação direta com a história ancestral dos negros, que em outras partes do mundo já adotavam essa forma de moradia”, diz o fundador da ONG Bagunçaço, Joselito Crispim.
A ocupação começou em Itapagipe em 1942, mas não tardou para que se espalhasse também pelos bairros do Uruguai, Massaranduba, Vila Ruy Barbosa, Jardim Cruzeiro, Caminho de Areia e Lobato. Um Plano Urbanístico de Salvador criado em 1943 tinha grandiosos planos para a Enseada dos Tainheiros. Os terrenos de Marinha situados no local deveriam ser preservados para implantação de indústrias. Anos depois, a área ganha novo destino. Deveria servir para expansão de loteamento de habitação popular. “Essa confusão jurídica e indefinição oficial a respeito da finalidade da área motivaram, em 1947 e 1948, a ocupação ilegal dos terrenos ali existentes. Fenômeno que, na capital baiana, passou a ser chamado comumente de invasão”, explica o professor da faculdade de arquitetura da Universidade Federal da Bahia e autor da dissertação de mestrado Os Alagados da Bahia – intervenções públicas e apropriação informal do espaço urbano, Eduardo Teixeira de Carvalho.
Foi logo no início do surgimento de Alagados que Irmã Dulce elegeu o local para iniciar suas obras de caridade. No entanto, estranhamente, a comunidade que acolhia a todos calorosamente negou-lhe os braços. Quando chegou de mansinho levando médico para dar assistência às famílias e distribuindo medicamentos, era recebida com festa. Mas eis que surge em seu caminho um jornaleiro passando mal e o anjo bom da Bahia invade um barraco abandonado para atendê-lo. Desde então, todos aqueles que cruzavam com ela apresentando a saúde debilitada eram levados para o local. Por maior que fosse a admiração à “freirinha de aparência frágil”, aquela gente não concebia que o espaço fosse usado para abrigar doentes. Talvez achassem que já tinham sofrimento demais por perto e não queriam cogitar a possibilidade de alguma forma serem infectados pelos doentes. Tempos depois de expulsá-la, eram eles que se veriam na berlinda para deixar o local.



(Jornal Correio da Bahia - 11.02.07)

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