quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Gafieira do viaduto

O brega, a dor-de-cotovelo, a fugacidade de paixões ocasionais compõem seresta de rua

Pablo Reis

Há um olhar intenso, cortante, algo da vibração sutil e invisível que se estabelece no espaço entre um homem e uma mulher quando a sedução entra em jogo. Há um encontro de corpos, a combinação delicada das anatomias. Há os primeiros passos de dança, suaves, ritmados, complementares, os pés traspassados, o molejo contido de quadris, os braços sobre ombros, as mãos tocando a região lombar da dama, os sussurros entremeados de sorrisos. Há, acima de tudo, a promessa tácita de uma noite de diversão particular em um local mais reservado. Mas também há o ronco do motor do ônibus "T. França", passando a menos de três metros de distância do entretido casal, cortando o clima de fascínio mútuo, retirando as almas do Éden lúbrico em que se encontram para a realidade pouco romântica feita em asfalto e com cheiro de óleo diesel.

Há uma seresta, recorrente, concorrida, animada, concerto ao ar livre para a patuléia. Com o rótulo de uma pequena tradição de fim de semana, recebe o nome de Seresta do Pedrinho, mas o nome é o que menos importa porque nem os clientes mais assíduos são capazes de identificar esse batismo. O endereço é que toca fundo no coração dos freqüentadores. Fica na Baixa dos Pernambués, armada no estacionamento da Madeireira Brotas. E, coberta de um cenário onde o surreal e o concreto parecem se misturar em uma valsa do absurdo e do mundano, localiza-se praticamente embaixo do Viaduto dos Rodoviários. Sábado, 22h30. Logo depois de terem o enlace prejudicado pelo ronco de um ônibus menos sensível aos humores dos enamorados, Carlos e Suzete voltam para uma mesa, pedem mais uma cerveja e gargalham em uma conversa cheia de beijos no pescoço e mãos maliciosas. Nem parecem que estão cercados por 400 pessoas e a ponto de gritar para superar o volume dos alto-falantes. "Ah, eu adoro amar você/ Como eu te quero, eu jamais vi/ Você me faz sonhar/ Me faz realizar/ Me faz crescer, me faz feliz".

Dores da alma

Não é exatamente uma seresta, no sentido de reabilitação do gênero que notabilizou cantores como Francisco Alves e Orlando Silva. O repertório é composto por sucessos da música brega e romântica de pouca monta poética, imediatamente associados a estados da alma tão freqüentes, como a dor-de-cotovelo, as traições, os amores não correspondidos e até mesmo a angústia por um telefone que não toca. O som é comandado por Ricardo, mas não um Ricardo qualquer. É comandado por Ricardo e Seus Teclados, uma parceria que tem dado resultados a ponto de ele assinar um contrato de exclusividade com os donos do bar, atendendo exigências do público. "Aqui vem motorista, cobrador, comerciante, professor, empresário, empregada doméstica. Dá mais casais, só que quem vem desacompanhado sempre encontra um par", sugere Márcio Silva, o proprietário. Tudo ninado pela mais melodiosa performance de Ricardo. E dos teclados dele também, é claro. "Ah, eu te peço Senhor/Traz de volta esse amor/Senhor, está perto o meu fim/Eu te peço meu Deus/Tenha pena de mim".

Um rapaz com cabeça raspada aborda três garotas próximas ao telefone público do Restaurante May e Nay (o nome do local da seresta durante o dia). Com segundos de conversa já está dançando com uma. Mais uns minutos e as três estão na mesa. Uma delas usa gorro do Palmeiras e, para provar que não sente frio, veste um shortinho de cinco dedos de largura. Usando camisa pólo, por dentro da bermuda de surfista, meia soquete branca e tênis Nika, o careca não é exatamente a melhor tradução para um modelo casual chic dos editoriais de moda. Mesmo assim será identificado como "O Barão".

O Barão "manda descer", uma gíria que indica não haver incompatibilidade entre o futuro valor da conta e o desejo de diversão do anfitrião. E como se realmente fossem o maná caindo dos céus, brotam garrafas de cerveja (R$2,20), caldos de sururu (R$2,50), pratos de carne-de-sol, frango à passarinha (entre R$5 e R$7). Quase que instantaneamente, mais duas mulheres se unem ao grupo e agora O Barão é uma ilha de empolgação cercada de avidez gastronômica por todos os lados. Em troca, ele ganha o privilégio de um quíntuplo rodízio entre as parceiras de dança, uma seresta cada vez mais colada e intensa. E ele, que de bobo parece ter só a mão direita, dança com a garra bem espalmada na zona coccigeana da parceira, para deleite de voyeurs menos perdulários. "A verdade é uma só", inicia Eliana Matos Tanajura, mulher do proprietário, "a gente dá oportunidade de diversão para esta classe média. Eles não podem ir para um Casquinha de Siri, Katendê, curtem por aqui mesmo. A gente passa para eles o prazer da vida. É só alegria". Nessa socialização do entretenimento, espécie de esboço para um projeto Tédio Zero, ela vende entre 150 e 200 caixas de cerveja por fim de semana.

Contramão

Na noite agitada de sábado, quando o fluxo de carros aponta para os bares da orla, é no aconchego da proximidade de um ponto de coletivo que pedestres originários de bairros populares empreendem sua balada. Chegam a ocupar uma faixa da pista, tamanha a concentração de pessoas interessadas na curtição. E entre os ônibus que passam a poucos metros de distância (com passageiros esgueirando-se nas janelas para olhar o movimento), os boêmios dançam suas alegrias e tristezas.

"Pior que tudo isso é te perder/ Ter que chorar, ter que sofrer/ Pra aprender então a dar valor/ A um grande amor". Ricardo, com a voz chorosa dos que sofrem por amor e sabem incorporar a letra de uma música, leva os casais e os solitários ao delírio. É ídolo. Simultaneamente, no Aeroclube Plaza Show, um dos destinos prediletos de uma outra classe média (a que tem condições de pagar quase R$8 por um combinado de pão com hambúrguer e picles, um copo de refrigerante e fritas) todo o estacionamento está lotado de carros para um público que prestigia o Festival de Rua. O grupo Barravento, com um samba-de-roda que já percorreu festivais de Ferrara, Vicky, Marseille, Paris e Londres, coloca curiosos para dançar o "miudinho", característico da região de Mutá e Salinas da Margarida. Depois, é remunerado com o depósito de algumas cédulas e moedas em um chapéu no meio da roda e com a venda de cópias do CD Vatapá de véia, a R$12. Uma arrecadação que vai ser rateada por seis integrantes.

Sem precisar pagar um tostão aos eficazes teclados, Ricardo recebe R$100 por apresentação na "gafieira do viaduto". Na sexta, o som ao vivo é das 20h à 1h, no sábado, das 21h30 às 4h, e no domingo, das 20h às 23h30. Só precisa destinar uma parte da remuneração ao companheiro Neto, que assume como vocalista em determinados momentos. "Já fizemos shows até no Rei da Codorna e na Cabana do Mané", vibra Neto, como um artista relatando uma apresentação na casa de espetáculos nova-iorquina Carnegie Hall. Mas o orgulho mesmo é tocar na seresta viária. "São pessoas legais, apesar de morarem na periferia. Não há violência", alega. Ex-vocalista de uma banda de pagode chamada Zuêra, ele garante que não se arrependeu de sair de "um grupo que vai deslanchar". Ídolo até entre os pares, Ricardo, 22 anos, com cabelos descoloridos e vestido em branco encardido, não quer fazer sucesso às custas de pagode, funk, axé, rumba. Quer ser reconhecido pela seresta. "Minha carreira tem três anos, dois meses e 17 dias". Uma trajetória com dois pontos altos: um cantando no reveillon em Vila de Abrantes ("só tinha gente de posses"), outro concedendo a entrevista. Como se fora um puxador de bloco adentrando o circuito oficial do Carnaval, com todos os holofotes no Campo Grande, retribui, durante uma canção, a gratidão de falar à imprensa sobre a carreira: "Um abraço para essa galera massa do Correio da Bahia". A platéia, enganchada em si mesma, nem percebe o primor de merchandising.


Vila do prazer
Prelúdio de encontros calientes, a seresta serve de apoio para a indústria dos motéis da região

Savage, Scorpius, Belo, Lord''s, Bonanza, Pirâmide, Boa Viagem, Rodoviária, Millenium, Morena, MB, Norte Ray, Minas, Max, Dallas, Resedá, Ponta Verde. A confusão de quem lê uma frase sem verbo com tantos nomes próprios estranhos deve ser semelhante à indecisão dos clientes da Baixa do Pernambués na hora de escolher o melhor ou mais acessível hotel para experimentar uma noite de pouco sono. Pois num espaço do tamanho de dois quarteirões estão mais de duas dezenas de estabelecimentos de hospedagem para usufruto rápido, o eufemismo enviesado para o que o senso comum chama de hotel de alta rotatividade.

Pólo de inúmeros abrigos para troca de prazer, vila de pequenos e baratos (em média, R$10 o pernoite) oásis afrodisíacos, a região superou tradicionais locais como o Largo 2 de Julho e a Calçada. A descoberta da vocação da área para celeiro de edificação das tendas modernas para deleite sexual é recente. Confunde-se com o nascimento da seresta. Criada há seis anos por Márcio Silva e a mulher Eliana Tanajura, depois de terem uma barraca removida pela prefeitura em ponto próximo ao Mercado Modelo, a seresta tornou-se o prelúdio ideal para os romances fugazes. E o garoto Pedrinho, filho do casal, que empresta o nome ao evento, nem sequer tem noção disso na inocência de seus 8 anos.

"No sábado à noite, quando o movimento na música ao vivo é mais intenso, todos os hotéis daqui ficam lotados", confirma a balconista Jucélia, do Bonanza, falando em nome de todos os estabelecimentos vizinhos. O fato dela atender no Bonanza com farda do Hotel Lord''s indica até uma possível cartelização. "É, o proprietário dos dois é o mesmo", admite, recusando-se a dizer o sobrenome. "O único problema de lá é a falta de segurança. Há brigas, tiros e atropelos", acusa. A proprietária Eliana rebate dizendo que o bar passou a levar uma fama injusta. "A realidade é uma só: essas coisas acontecem lá dentro no bairro e terminam usando o nome da seresta como referência. Aqui não tem nada, principalmente depois de contratarmos dois seguranças", ressalta. A reportagem do Correio da Bahia passou um total de cinco horas entre as noites e madrugadas de sexta e sábado e o máximo de violência observado foi uma reclamação por um tira-gosto em pouca quantidade. Além, é claro, de algumas violências contra o idioma em cantadas mal ou bem sucedidas.

Frases desconexas metralhadas sistematicamente no ouvido de uma pretendida são as armas do músico Deocarlos, uma espécie de decano VIP do local pela assiduidade com que experimenta os benefícios do voluptuoso ambiente. A abordagem, complementada por uma dança mais intensa e goles de cerveja, daria tão certo que no dia seguinte um revigorado Deocarlos, novamente na noite, propalaria proezas de alcova. "Ela era carioca, mulher que sabe das coisas", seria uma das poucas revelações publicáveis.

Audiência de viaduto

Cada gag, cada encontro se transforma em espetáculo atrativo. E ganha audiência dos moradores das cercanias reunidos sobre o Viaduto dos Rodoviários para assistir, atentos, às digressões da ebriedade etílica e sexual. Lá, do camarote privilegiado, todo dia tem uma história nova. Uma chuva passageira não desanima nem ameniza o calor dos corpos. Muita gente procura abrigo nos toldos, mas dois casais continuam dançando e sentindo as gotas percorrerem a pele. O cantor Ricardo interrompe o show de músicas românticas e coloca pagode para ser ouvido. Protestos. Cinco minutos depois, as nuvens vão embora e a tempestade afetiva retoma seu poder sobre a atmosfera do local, junto com o cheiro de asfalto molhado.

O operador de pá carregadeira Ricardo Cerqueira dos Santos derrama-se em eflúvios amorosos para a recém-amiga Andréia Gomes, 25 anos. Acompanhado por ela e duas colegas, divide-se em atenção e ofertas de bebidas às três. Beija Andréia e, ao se aproximar da amiga Cássia, recebe um incentivo bastante liberal da parceira original: "Beija, beija". Ele não atende aos apelos e volta ao chamego da primeira.

Andréia, dona de casa, diz que está começando a conhecer o local, apesar de aparentar estar bem à vontade para uma primeira vez. "Gosto de beber e de dançar. Só isso". E antecipa-se a qualquer pensamento maldoso que possa surgir durante a conversa. "Vou dormir só. Não vou para cama na primeira viagem", avisa, suada da dança e da bebida. Como mágica coincidência, quase produto de uma ficção ou sonoplastia de telenovela brega, o tecladista Ricardo emenda o hit Preciso ser amado, de Zezé di Camargo e Luciano: "Eu não faço amor por fazer/ Tem que ser muito mais que prazer/ Tem que ser todo dia, sem cama vazia/ No amanhecer."

Andréia pensa mesmo é no ex-marido, que se separou há um ano e três meses. "Apesar de ele ser 25 anos mais velho, ainda o amo", declara-se. O cinquentão deve ser mesmo bom de seresta para ter deixado até hoje a coreografia da paixão marcada no coração da ex-mulher, mesmo com ela alguns mililitros acima da razão.

Ricardo (não o músico, o curtidor), entre um e outro ardente encontro de lábios, não planeja um fim de noite solitário na cama, como parece acreditar Andréia. "Rapaz, não vou mentir, toda vez que venho aqui me armo com uma", gaba-se o animado projeto de don-juan. Morando vizinho em Pernambués, é freqüentador assíduo e coleciona diversas estripulias sentimentais no local. "Já peguei duas aqui na mesma noite e quando uma viu, quis brigar com a outra. Larguei foi as duas aí e me piquei", recorda, indignado. "Hoje, liguei para a federal dizendo que não ia sair, mas parece o diabo. É só chegar aqui que aparece mulher".

Assédio ao fotógrafo

Nem o repórter fotográfico do Correio escapa ao clima de reedição sem censuras do mandamento "ama ao próximo como a ti mesmo". Uma cliente pede o privilégio de que ele largue a câmera para concedê-la uma dança. Diante das sutis esquivas do fotógrafo, a moça faz chantagem sentimental. "Quer saber meu nome? Só se dançar comigo. Você não vai se arrepender", avisa, lânguida. Não adianta nem argumentar que é possível anotar o número de telefone para um contato futuro. "Na minha agenda tem tanto nome de homens que eu nem faço idéia de quem sejam". E após ser fotografada dançando, questiona: "Não vai mostrar o rosto não, né?" "Porque eu sou procurada pela polícia. Sério mesmo", complementa, sisuda. Naquela noite, a anônima seria algemada pela sedução má intencionada do músico Deocarlos, o contador de histórias.

Falar em polícia é mais do que suficiente para acionar a defesa da dona do bar. "A realidade é uma só: temos câmeras instaladas e os únicos problemas são as cenas de ciúme dos coroas que pegam mulheres bonitas, do corpão, em roupas curtas, e o pessoal não respeita", detalha Eliana Tanajura, antes de avisar sobre a abertura de uma filial da seresta na Praça Cairú, no Comércio, a partir de 27 de março. Para auxiliar nas conquistas, a vendedora de flâmulas românticas, Letícia, 14 anos, carrega sua cruz feita em canos de PVC. É um suporte de plástico em forma de "T" para pendurar dezenas de mensagens de amor com lirismo questionável, mas de eficácia comprovada. Funcionam como verdadeira flecha de cupido em certos casos. São mensagens como: "Você me ensinou o que é o amor/ Eu não choro porque você me ensinou a sorrir/ Eu não sofro porque você me ensinou a amar/ Eu não morro porque você me ensinou a viver/ Mas se um dia você me deixar eu choro, sofro/ E até morro porque a única coisa que você/ Não me ensinou foi viver sem você". Louvados sejam os deuses da poesia e do capitalismo que permitem que uma obra dessa preciosidade seja vendida por um real.

Até quem está a trabalho é afetado pela onipresente "vontade boa de se dar", como define uma música da banda de axé Jammil e uma Noites (que não está no repertório da seresta). A garçonete Vânia, por exemplo, não é liberada dos convites para uma dança e das cantadas. "São tantas que nem dá para falar", desdenha. O cantor Ricardo, como profissional aplicado, levou as coisas mais a sério. Foi entre uma música de Amado Batista e outra lamentação de José Augusto que conheceu a companheira Sheila, há três meses. Resolveram juntar as partituras e claves de sol. Só que ainda é meio difícil falar em unidos para sempre. Indagada sobre o sobrenome do príncipe encantado, Sheila raciocina, matuta, pensa mais um pouco e diz um "peraí". Vai no ouvido do artista, espera ele dar uma pausa para respiração durante a execução do sucesso Morango do Nordeste e volta com a resposta: "É Reis. Reis Mendes", vibrando como quem venceu um duelo de calouros. Se já conta três meses de relação e não sabe sequer o sobrenome que pretende herdar em um possível casamento, é sinal de que a valsa pode não ser de núpcias. A realidade é dura, mas é uma só, Sheila.

(Correio da Bahia)

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